O roteiro do silêncio de Hilda Hilst

«O vocábulo se desprende em longas espirais de aço».

Hilda Hilst - por Fernando Lemos, 1954São Paulo – 1954 © Fernando Lemos

Como é bom iniciar uma nova história! Pequena ou grande, alimenta o além. Nessa postagem inicio meu trajeto aqui no Liberoamérica. Com saludos, memórias e mucha poesia! Começarei dialogando com uma das minhas maiores influências literárias – num pequeno ensaio, crítica, resenha, sobre um dos meus livros favoritos dessa que é hoje considerada uma das maiores escritoras brasileiras (infelizmente, eu sei, ainda não tão conhecida como merece no exterior): a magnânima, Hilda Hilst.

Hilda Hilst (Jaú, 1930 – Campinas, 2004) foi uma poeta, ficcionista, cronista e dramaturga que decidiu, após os primeiros livros de poesia publicados, se restabelecer no silêncio de um sítio distante da grande metrópole São Paulo, fundando a sua conhecida Casa do Sol. Por lá, viveu suas últimas décadas e criou uma rotina diária rigorosa de estudos e escrita. Para esse texto, trago um momento especial e inicial dessa sua indelével trajetória: a publicação do seu quarto livro, Roteiro do Silêncio (Anhambi, 1959).

Primeiramente, visualizaremos um panorama geral de sua poiesis nos três primeiros livros da autora: Presságio – 1950; Balada de Alzira – 1951 e Balada do festival – 1955. Hilda já demonstrava neles uma estética sem igual desde a primeira obra, publicada aos 20 anos de idade. Com forma e conteúdo fincados em estabelecer densos e surpreendentes diálogos entre o ser e a mística sequencial dos elementos da natureza (que a marcariam no futuro como uma hermética bem-aventurada) a poeta percorreu, do simbolismo ao surrealismo, as simetrias de sua própria fala – oposta aos movimentos correntes em sua contemporaneidade no Brasil: concretismo e modernismo. Do seu lirismo terroso adentrou ao que a definiriam pelo resto da trajetória.

Em Presságio (1950) encontramos 20 poemas de Hilda (coincidência ou não com a própria idade). Entendo que o livro Presságio fosse a própria previsão de Hilda, de sua estrutura poética – que se basearia a partir dali num culto à natureza, em forças misteriosas e simbólicas que a fariam desenvolver uma percepção profunda dos próprios sentimentos humanos: “me fizeram de pedra/ quando eu queria/ ser feita de amor” (VI); “sou quase morta/ no descanso estéril/ da cor negra” (XIV).

No livro seguinte, Balada de Alzira (1951), encontramos Hilda de forma mais intimista. Os temas subjetivos se tornam questionamentos objetivos da poeta sobre as relações humanas, como o amor e a tristeza: “Tanta tristeza no meu sono imenso…” (VII), “Existe sempre um amigo perdido/ um encontro desfeito/ e ameaços de pranto na retina” (XII); o tempo: “E nada restou/ das infinitas coisas pressentidas/ das promessas em chama/ Nada” ( III); a incompreensão na humanidade: “o que ficou de mim/ além de eu mesma/ não sei” (Poema II), a morte, as coisas e as ideias:  “As coisas não existem/ A ideia, sim.”( XVI), a mulher, o fruto – em Alzira: “Alzira soluço brando/ e face tão misteriosa/ que pena tenho guardada/ por te saber corrompida” (XVII).

Considero o livro seguinte, Balada do festival (1955), como uma transição de Hilda – rito de passagem entre a iniciante poeta, aos 20 anos, à poeta do festival, aos 25 (para no breve futuro se tornar uma poeta que escolheria aos 29 anos de idade, silenciar-se, a traçar com profundidade sua real expressão,  no livro Roteiro do Silêncio (1959), que analisaremos em seguida). No Balada do festival temos a reunião de outros 20 poemas, pelos quais Hilst trata do próprio corpo, ali feito de argila,  em vontades “gigantescas e disformes/ sem caminho nenhum/ para o mundo dos homens” (contracapa), num mundo em que “ficaremos sós e olhos abertos/ para a imensidão do nada” (II). É nela que Hilda “sopra” o seu envolvimento amoroso com Vinicius de Moraes, num poema dedicado à ele (IV):  dizia-lhe, com uma generosa feição e ironia, da hora de sua morte “Na hora da minha morte/ estarão ao meus lado mais homens/ infinitamente mais homens que mulheres/ (Porque fui mais amante que amiga) (…) Não era mau poeta a pequena Hilda”, mas “Tem tanto medo da terra/ a moça que hoje se enterra./ Fez poema, fez soneto/ muito mais meu do que dela./ Lá, lá, ri, lá, lá, lá.” . E é também, no poema XVII que anuncia o que viria em seu quarto livro:  “Tão sós estão os homens e a palavra./ Por que não haverá um outro mundo/ sem ruído nem boca,/ mudo, esplendidamente mudo?”

Hilst constrói definitiva esse mundo em Roteiro do Silêncio (1959). Esse livro foi o tipo de obra que levaria Hilda rumo ao berço dos poetas essenciais no Brasil: porque descobre na própria delicadeza um diferente sistema poético que transforma sua voz e influência a próxima geração; como ela tem me influenciado

A obra Roteiro do Silêncio é dividida em cinco elegias (É tempo de parar as confidências), seis sonetos (Sonetos que não são) e mais outros nove poemas (Do amor contente e muito descontente). Inicia sua enunciação poética percorrendo as elegias, no tempo em que “(…) o poeta/ assombrado com as ausências/ resolveu:/ fazer parte da paisagem/ e repensar convivências.” (I), propondo-nos que “ajustemos a mordaça” (II), pois, é necessário silenciar, vivendo intensamente a natureza – como uma própria natureza, sendo parte do que são a terra, as árvores, os pássaros, as pedras, a paisagem, enfim, pois viver e morrer, no tempo presente da farsa é transição; só assim o poeta é transmutação (II):

[…] Porque no tempo presente
Além da carícia,
É a farsa
Aquela que se insinua.
Faço parte da paisagem.
E há muito para se ver
aquém e além da colina.
Há pouco para dizer,
quando a alma que é menina
Vê de um lado o que imagina,
Do outro o que todos vêem:
O sol, a verdura fina
Algumas reses paradas
No molhado da campina.
Ventura a minha, a de ser
Poeta e podendo dizer
Calar o que mais me afeta.
Ventura ter o meu mundo. 

Assim, pelo silêncio, “é tempo para escolher/ o anoitecer nas planuras/ e o contemplar luaceiros/ e é tempo para calar/ a estória dos meus roteiros” (V) para revelar-se o mistério.

Após a renúncia feita às próprias confidências, em Sonetos que não são, Hilda fala do universo do amor como pena, entrega e salvação e há algo de estonteante na construção dos sonetos. Primeiro, por ser a primeira vez que ela publica sonetos, e segundo, porque há neles uma tentativa de libertação das amarras mais fixas, numa construção do que chamo de sonetos hildianos.

Em sua estrutura, os seis sonetos possuem várias formações. Nos sonetos I e IV, temos dois quartetos e dois tercetos (petrarquianos), no soneto II,  um quarteto, um heptassílabo e um terceto; no soneto V, quatro quartetos e no soneto VI, três quartetos. Além dos versos petrarquianos, Hilda também utiliza, assim como Miguel de Cervantes, sonetos estrambóticos*, (V). A métrica dos sonetos é construída em decassílabos heroicos, com rimas externas, de forma alternada entre os versos.

Os sonetos de Hilda falam de uma procura, uma compreensão do amor, no qual ele muitas vezes não é correspondido: “aflição de te amar, se te comove/ e sendo água, querer ser terra.”;  “se não fala se amor, logo se cala?” (II),ao mesmo tempo que compreende a si mesma como distante a esta correspondência ”Não sei. De quase tudo não sei nada./ O anjo que impulsiona o meu poema/ não sabe da minha vida descuidada.”; ‘‘Silenciosa dos vãos de um alto muro./ Melhor é não te ver. Antes ainda/ esquecer de que existe amor tão puro.” (III).

Em seu roteiro de silêncio, ela caminha, lânguida no mundo em que existe, no amor que sente ‘‘Ah, o mundo que os meus olhos assistiram…/ Na noite com espanto eles se abriram./ Na noite se fecharam, de repente. (IV); ‘‘Amo-te tanto. Sendo breve a vida,/ Impossível a volta àquela infância/que seja a tua ternura desmedida/ como se eu fosse também uma criança.” (V), mas o que decide, ao soneto seis, é mesmo calar-se, leve e só, para encontrar a sua própria verdade poética:  ”Leva-me e deixa-me só. Na singeleza/ de apenas existir, sem vida extrema./ E que no escuro claustro do poema/ eu encontre afinal minha certeza.” (VI)

Na parte final da obra, ela conclui o próprio mistério em seu silêncio no conjunto dos nove poemas Do amor contente e muito descontente – o próprio título remete a uma dualidade contraditória: é possível ser contente e descontente? Ou seria possível ser somente contente ou descontente? Parece-me como se Hilda nos dissesse: é preciso silêncio para fala; é preciso descontentamento para o contentamento, e vice-versa. Os nove poemas falam sobre  Hilda em seu diálogo com o mundo, à gente, ao pai, à lua.

Abençoa o amor, pelo poeta, como felicidade,  e as viagens, vínculos, dádivas – na noite, como intensidade, em seu coração de brasa (II). Convida-nos para cantar, brincar e antes de tudo respeitar o medo “É antes de tudo a terra/ que me traz o medo (…) quando me vês perdida/ e em silêncio./ É antes de tudo a terra/ que confunde a amarga.” (IV). Fala também da tristeza, da morte, das crianças, de Deus.

Hilda, por todo o livro, cria um roteiro, um elo, uma oração silenciosa e perturbadora, que é capaz de nos sensibilizar na dureza da carne que se esvai, no ardor dos sentimentos que definham naturalmente, na realidade fantasmagórica da vida e da morte, na doçura dos elementos da infância e da amarga velhice, na construção de si em meio a seu interior, no qual Hilda nos revela o silêncio de sua marginalidade, em sua simplicidade como potência, enfim, a humanidade como eterna força propulsora.

[…] Ah, como cansa querer ser marginal
Todos os dias.
Descansem anjos meus. Tudo vem tempo
No seu tempo. Também é bom ser simples.
É bom ter nada. Dormir sem desejar,
Não ser poeta. Ser mãe. Se não puder ser pai.
Tenho pedido a todos que descansem
De tudo o que cansa e mortifica.
Mas o homem não cansa.

*O termo deriva do italiano strambotto (“extravagante, irregular”).