«O olho é aquilo que foi sensibilizado por um certo impacto do mundo»
Maurice Merleau-Ponty
Ver
o movimento das coisas
em cifrada aparição –
o eterno quer
lançar seus olhos
aos meus.
Nunca – ter visto
e o mesmo
ver, ver,
retirar-se
para a borrasca.
Se fosse cega
a paisagem,
se fosse igual.
Eu, cega
soberania para imagens.
Seria:
para o (não) ver,
para o fugaz,
para sempre
primeira retina.
*
Passagem
Há em mim uma anunciação,
e tem a garganta fresca
a que ri sem saber por quê
me olha à deriva do espelho,
frágil instrumento
ao temblar das formas.
*
Olho para o mundo
como se nunca tivesse existido.
Custa-me o dom do apagamento:
duas pupilas irrecuperáveis,
noite no azul do dia.
Minha visão segrega os homens,
eles não me acham.
Cada vez que bato,
dão com a porta de minha existência na cara,
eles não me abrem.
Mas redesenho
trilhas irremissíveis,
perdões grandiosos.
Relíquias que perduram no fundo do oceano
ao topo do futuro.
*
Não há culpa
se os olhos, tão grandes
derrubam cercas e aramados
confusos, estes nomes
não podendo estar mais próximos
que pairados no ar e no amor.
Não faço culpa a ninguém
de olhar com invasivo medo
texturas, tempestades
imprecisões do arrepio
e do aroma à luz
de transversais dos sentidos.
Veja, me veja
no alambrado míope
destes olhos, torcedores
tragicômicos da beleza.
Testemunham a dilatação
progressiva de um invento
ou confirmação –
não há culpa em saber
olhar.
*
Estou
desde que nasci
em mim
como um aedo
que prescreve o tempo
com olhos loquazes
estou
sem poder ver
quem sou.
Quero me fechar no mundo
claro, aberto, circundante
ser os olhos
com que me veem
rendida.
Dependurar-me no perigo
do intermédio
tédio, Tejo, ponte
plágio, ilha.
Me furam os olhos
maior medo
bebo tanta água
para me ver e me saltar.
*
Olhos
Em vídeo, meus olhos
estão quase sempre caídos.
Estranho, meus olhos
a curvatura ascendente neles
fazem lembrar os olhos de meu pai.
Perdi, acho que perdi
aquela pequena foto, aquela
meio 3×4: uma criança de meses.
A foto de meu pai que eu ganhei
quando também era uma criança
muito mais velha, uma criança
de muitos meses subsequentes.
Eu sempre estranhei, sempre
um bebê numa foto 3×4.
Mas só reconheço agora.
Reconhecia gostar
de ter os mesmos olhos que ele.
As bochechas fartas, o rosto redondo
o futuro que eu inventava
augúrio desenhado até os 32 anos.
Agora, que sou mais velha que ele
meus olhos, em vídeo
estão quase sempre caídos.
imagem|Roberta Tostes Daniel
por André Felipe Moreira da Silva