A começar pelo chocolate, tudo em mim é excesso. Ou falta. Aparentemente, a cura para o humor incompreensível de uma mulher está ao alcance da mão. A porta que dá para a saída de emergência, desútil pela presença de uma cômoda-papeleira mal posicionada, e sobre ela o chocolate, força a fechadura ao ritmo de um sopro dispensável que anuncia a transição entre estações. Pela do banheiro a água antes condensada rasteia como uma trepadeira e se esconde pelos espaços desocupados a inchar os móveis. A parede explode pintura no assoalho. Aqui dentro tudo é muito úmido ou muito indigno. Sobre eles papéis e copos, provas de minha postura inconsciente dentro de meu próprio espaço. Queimo a língua com o chá pela urgência da sede. Pilhas de trabalhos atrasados, estudos inacabados, histórias que inventei para poder entorná-las no chão como a serragem de uma gaiola de um animal que sou eu. De nada nos vale a erudição frente ao silêncio perpétuo de um cômodo. O telefone toca, cobram prazos, batem à porta. Atendo vez ou outra para me recuperar depois.
Não consigo me lembrar da última vez em que senti uma vontade consciente de ir até a rua. Penso em ao invés disso bloquear também a porta que dá para o hall. Minha pele desbota pela falta de contato com o sol. Hoje de manhã tentei rezar. Mas não consigo me concentrar sequer em uma oração decorada, porque a fé se tornou tão distante quanto intrínseca, como a maioria das coisas. Também não gosto do cheiro do ar lá de fora. Há algo de diferente no ar. Há uma presença que desanima e desmotiva. Mas há, também, ossadas. Uma derrocada sem fim que tomou a forma de um gás e subiu. Uma adoração silenciosa a não sei quem. Tínhamos medo, mas o gás aniquilou. Nada disso me convenceria, não fosse o gás. Um cheiro de poeira condensada. Consigo sentir uma camada espessa de poeira sobre o meu corpo como se ela própria tivesse se apossado de mim. Tudo meio sujo meio aquele intervalo entre as cinzas e o intacto, o que estava prestes a queimar e não queimou – matéria-sujeira-pó-infértil. Algo como um inseto que não morre e quer andar sem as patas. Marimbondos que entram pelos vitrôs abertos. Alguns, eventualmente, pelos do banheiro. Como aquele, que pousou no espaço molhado entre a parede e a cortina de plástico, amarelada pelo coalho de pele que sobe do banho. Somos relativamente grandes se comparados a um rastro de umidade. Mas um rastro d’água é capaz de encharcar as patas e as asas de um marimbondo, torná-las pesadas a ponto de que se torne um inválido. Mesmo assim, ao assistir a sua resistência, a seu comportamento invulnerável ao tentar subir em direção ao vitrô, temi o marimbondo do banheiro como uma presa, inconsciente e desprovido de cálculos. E dei-lhe uma chinelada acessória: estava condenado. O corpinho do marimbondo circulou até encostar no canto mais distante do chuveiro. Ainda posso vê-lo se da cama torço o pescoço em direção ao banheiro. Mas evito. Somos intolerantes à memória da dor. Mesmo frente a coisas que a vida já arrematou. Tirânicos ao mínimo sopro de revelia. Como quem mata o ser amado na espera de atenuar a dor de perdê-lo.