A voz dos sem voz

Firmino Pintado, personagem importante e emblemática, nunca se atormentou com a ideia da morte, afirma o narrador na primeira linha de A Revolução dos Feios. Tinha sim, um medo oposto: não ser pai. Ora, muito mais que infecundidades biológicas, temos aqui uma metáfora importante que vai percorrer toda a obra, a da vida infértil de criação, a vida-sem-vida, a vida que, por não merecer tal status, é pior que a morte. Contra essa torrente sócio-política e existencial é que os feios se revoltam: os recepcionistas, os deslocados, os sem-rima, os motoboys, os frentistas, os sem-norte, os sem-jeito, os desajustados. Dar voz a essas personagens sem voz parece ser mesmo a busca ingloriamente humana do autor, tal como descrever o silêncio de amar alguém, o valor de uma nota 10 sem aluno, a própria cor do silêncio, um domingo que imita a vida.

Pensar na Revolução é pensar indecorosamente na vida de Ni Brisant. Mas, ora, o que vale a vida de um autor diante de seu texto autoral, dir-me-iam os críticos. Pois bem. Não sei. Nem quero saber. Só sei que a Revolução dos Feios é toda a sua vida, e essa não é só dele, é de toda minoria, todo marginal, todos os bahias. Há aqui certamente um ingrediente político poderoso, embora a política esteja aparentemente fora dos temas que permeiam historicamente seus textos. Mas, vocês sabem, o que não é político entre os homens? Quanto de revolucionário há num abraço, num ombro dado, num ouvido indigente encontrado na madrugada daquela noite em que um amor se foi para nunca? O pior que pode acontecer, o autor sabe, é nada.

Entre crônicas poéticas realistas e contos fantásticos regionais, a flecha universal nesta obra de Ni Brisant está sempre avoando deliberadamente ao alvo: o peito do leitor. Digo “peito” porque, apesar de um texto cuidadosamente pensado para ser simples – e aparentar simplicidade é mesmo das maiores engenhosidades que podemos encontrar -, a carga emocional é a arma e elemento mais poderoso desse que já foi um dia apelidado de “Poeta Sentimento”. Mas, para além de sentimentaloidismos, o que o texto brisantiano propõe é a humanização do leitor pela veia afetiva, uma lágrima sincera, um riso de alteridade e de beleza boa roçando o estômago. Palavra, como bem diz, não é nada mais que um pedágio que as pessoas pagam tentando chegar até as outras. Deslocar essa palavra e habitá-la de cores passarinhas talvez seja o segredo dessa arma.

Abrir descaradamente o peito, desarmar-se, passa então a ser condição primordial para se extrair o máximo desta obra. Mas não se aperreie, logo de cara ela boom! – te desarma. Pegue essa analogia – “Como uma galinha d´angola tentando cruzar o Mediterrâneo num voo só, Ruivo se desesperava…” – e tente se proteger de um lirismo assim. É, não dá. E esse desarmamento compulsório deve ser mesmo o mistério que faz com que cada palavra nesta obra você queira levar pra casa.

Um tropeço, uma vírgula na passagem brutal do tempo, assim são os momentos impagáveis de um circo estranhamente nômade, perdido numa vila fantasticamente pacata, mítica: essa vila imaginária chamada Infância. Para ela Ni Brisant se volta e parece, ao mesmo tempo, querer superá-la. Mas, como sabe, não há cura – não, não há cura para o que somos. Drummond diria: fique torto no seu canto. É, não dá. Pulmão de passarinho é voo e avoar. Evoé. Avoemos!

(Willian Delarte)

revolução

Obra: A Revolução dos Feios
Autor: Ni Brisant
Gênero: Contos (literatura brasileira)
Editora: Selo do Povo
Ano: 2016

 

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