Arcano XIII A Morte

Ela virá vestindo veludo escuro manto bordado com pelo
felpudo fino couro de mil mariposas
armazenadas em potes, potes e mais potes,
olhos e estômago nas costas,
como uma raposa farejando os restos,
ganindo fora da sua barraca.
Olhe ela lá.
Não adianta correr na direção oposta,
pois opostos são todos os caminhos assim que pisam os pés.
Dois corpos em pilha já formam uma dama num tabuleiro
cruzado
preto e branco
harpias
aureolam
apontam seus olhos para o pedaço de corpo
luzindo entre os escombros.
Olhe o horizonte e se apronte.
Daqui em diante vai imitá-lo.
Veja que não está de pé, sentado ou ajoelhado.
Apenas jaz deitado, enquanto o sol e a lua

tratam de manivelar o tempo,
enquanto uivam os ventos
e maduram as romãs.
São doces os frutos da noite.
Você implorará pelo açoite
quando a carne ficar pesada feito saco de batata.
Com as batatas, seja tubérculo.
Debaixo da terra,
rogue ao seu sangue que jorre até findar,
é útil regar o corpo que recém partiu.
Para isso ela vem.
Ouça esta que lhe aconselha.
Ela atravessará as ancas como um tiro de bala de prata
com gosto de nata
do colostro
uma lágrima apenas lhe cortará o rosto
enquanto a semente afiada
se aloja no osso,
inacessível a qualquer cirurgião.
Aceite quando ela lhe oferecer a mão.
Ande mulher, não a obrigue a levar-lhe à força.
Não se justifique
dizendo que ainda é moça,
que nunca foi amada,

que sua vida está toda ensaiada,
que não acabou de lavar a louça
ou que até este momento,
não provou sapoti.
Apronte-se,
ela não terá pena.
Cortará suas asas,
como um matuto faz a seus sabiás.
Aprume-se,
coisa feia é espiga frouxa na hora ser ceifada.
Você sabe,
você já foi carvalho.
As marcas do machado
sangram frescas na madeira.
Esqueça de desinfetar,
ofereça-se às bactérias,
acabe com esta fome.
Esta carne roxa.
Banquete pros trabalhadores da terra.
É uma felicidade servir de alimento, você verá.
Trate de estar areada quando estiverem a sós.
Passe uma lixa nas saliências se quiser mostrar capricho.
Ela vem.

Tem os novelos pendendo do pescoço, vai
desfiar seus fios,
desatar seus nós.
Sabe, deveria cortar as pontas,
imergir em argila,
contratar traças,
percevejos,
escaravelhos
e moscas.
Deixe-os entrar.
Onde você estará?
Esmaltando alcunhas,
regando aorta?
Ninguém mais ninguém menos
que a velha testemunha
— primeira mão mala direta —
a indesejada testemunha,
baterá à sua porta.
Toc, toc, toc!

In Dilúvio Mudo – Uma Arcana Jornada [Editora Urutau 2016]

Foto de Érica Castelo Castilho [in Ensaio Dilúvio Mudo 2106]

A %d blogueros les gusta esto: