Gustavo Matte: Subtropicália como resposta ao Brasil-de-fato

MATTE LIBERO

Marcelo Labes: Tu nasceu em Chapecó, no interior de Santa Catarina. O que isso significou no surgimento do escritor?

Gustavo Matte*: Pergunta interessante. Tem vários desdobramentos aí. O fato é que Chapecó não é, digamos assim, uma cidade «letrada», com qualquer tradição intelectual ou vida artística agitada. Acabamos ficando mais ou menos conhecidos no cenário underground (lado Bzão mesmo) dos anos 1990 por conta da banda Repolho e dos filmes do Petter Baiestorf, que não é de Chapecó, mas de Palmitos, ali do ladinho. Eu cresci nos anos 1990, numa família que não acumulou algum «capital cultural», então a primeira parte da minha trajetória foi bastante autodidata, de descobertas solitárias mesmo, quase todas em torno das revistas em quadrinhos, que eu adorava. Quero dizer, eu não tinha ninguém pra me indicar «lê isso», «assiste aquilo», e acabei consumindo muito lixo no processo, até ir encontrando as coisas legais. Fora isso, essa cena do rock e do trash que tava surgindo ali nos anos 1990 acabou alimentando muito a minha sensibilidade na adolescência. Chapecó tem alguma coisa de “gore”, não sei. Uma violência extravagante, expansiva e escrachada. Teria muito a dizer sobre isso, mas o fato é que eu acabei virando um menininho bizarro, e acho que isso reverbera claramente na minha literatura. Só que, no meu caso, que sou filho de uma italiana ultracatólica e de um alemão protestante (inclusive, como bom filho de um luterano, fui muito incentivado a aprender a ler pra poder desde cedo entrar em contato com a Bíblia), enfim, todo esse extremismo é dosado por muita culpa e insegurança, principalmente nas matérias do corpo e da sexualidade. Outra coisa é que a ausência de uma «tradição literária» local, firme e consolidada, na minha cidade, foi uma questão que passou a me incomodar e me instigou a tentar formular o que eu achava que eram (ou podiam ser) as nossas particularidades na produção artística.

ML: Tu deixa Chapecó para cursar letras em Porto Alegre. Mais ao Sul do centro do país, portanto. Ou Porto Alegre chega a ser um centro para o Sul (e para o Oeste)?

GM: Não sei se para o Sul. Vejamos: acho que os gaúchos possuem uma assertividade identitária que acaba reverberando de maneira muito forte no resto do país, a tal ponto de muita gente pra cima do trópico achar que gaúcho é gentílico pra qualquer sulista. Mas, pra quem é sulista, os «polos de atração» variam em importância dependo do lugar onde se está. Tenho a sensação de que, para um catarinense do litoral, Curitiba é muito mais uma referência do que Porto Alegre. Florianópolis, não sei… Floripa me parece uma cidade que não exerce tanta atração na esfera cultural/identitária, e isso tem muito a ver com o processo histórico de formação do estado de Santa Catarina, que não favoreceu uma unidade, uma sensação de pertença forte para quem não é da capital. Em Chapecó, por exemplo, ou mesmo no Oeste de SC como um todo, não há dúvida de que a nossa capital afetiva seja Porto Alegre. Em Chapecó, desde sempre, as pessoas torcem para o Inter ou para o Grêmio, além de ter muitos CTGs na região e de cultivarmos alguns hábitos gaúchos, especialmente culinários. Isso porque os imigrantes italianos e alemães que foram para lá já haviam chegado ao Brasil e passado uma, duas ou três gerações no RS. Meu desejo era ir para uma capital e vivenciar coisas que a vida extremamente isolada e provinciana em Chapecó não poderia me proporcionar. Porto Alegre pareceu o destino óbvio…

ML: Florianópolis é uma ilha em muitos sentidos. Mas assim também podemos enxergar a região Sul, como um arquipélago. Afinal, o que é viver no Sul do Brasil e como isso se resolve em contraposição àquele “Brasil-de-fato” que aprendemos a conhecer (e admirar) na televisão?

GM: Novamente, há muitos «suis» aí para pensarmos, e cada um há de ter uma experiência distinta. Posso falar apenas como um chapecoense que passou um terço da vida em Porto Alegre, mas imagino que a experiência de Brasil em Chapecó deva ser, em muitos aspectos, parecida com a de Blumenau, isso tu vai me dizer. (Risos) Eu sempre achava engraçado voltar de uma aula de história na escola e, caminhando pelas ruas da minha cidade, perceber que nenhuma daquelas «características essenciais de brasilidade» marcava a minha cidade de qualquer maneira que fosse. Claro que eu não tinha essa formulação na época, mas é a forma que, retrospectivamente, uso para descrever a sensação de «desconforto» e «não-pertença» que eu sentia, e num grau muito intuitivo. Veja o seguinte: Chapecó foi fundada em 1917. Não houve uso de mão de obra escrava africana na formação social e econômica daquela cidade; além disso, o Brasil já era não apenas independente, mas também uma república, e os europeus que vieram não eram portugueses, mas italianos e alemães; também, e nisso os historiadores podem me corrigir se eu estiver enganado, acho que aquela região nunca chegou sequer a pertencer ao império português, pois a questão das terras com a Argentina só foi resolvida no início do século XX. Assim, aquilo que muitos consideram elementos «formadores» da nação (o português, o negro e o índio) não participaram enfaticamente (à exceção do indígena) na construção da sociedade local; e o que os mesmos pensadores consideram os elementos «transformadores» da nação (o imigrante europeu, por exemplo) são, em Chapecó, o próprio elemento formador principal – embora através da violência contra os povos indígenas que ali se encontravam. Não é como o imigrante italiano que foi para São Paulo, onde encontrou uma sociedade estabelecida na qual deveria, bem ou mal, se ambientar. Ao mesmo tempo, a cidade é tão isolada (se tu passar um compasso de 450 km em torno de Chapecó, acho que não vai encontrar nenhuma cidade maior nesse raio, e olha que ali são apenas 200 mil habitantes) – tão isolada dos grandes centros que as «informações brasileiras» resultavam sempre difíceis, sendo um fenômeno mais dos anos 1970, imagino, através da televisão (e das instituições oficiais, como a escola). Ainda assim, nos anos 1990, assistir televisão era uma bizarrice. Quase nada do que tinha lá podia encontrar qualquer paralelo na experiência sociocultural que eu via no meu convívio imediato. A sensação era a de estarmos extraviados da tradição nacional, ou alheios à ambiência cultural brasileira.

ML: Pensar o Sul a partir de Chapecó pode fazer teu discurso parecer o de um separatista de «o Sul é meu país». No entanto, vejo a tua literatura como uma busca da brasilidade a partir do Sul, e não a negação do Brasil. É possível ser sulista e brasileiro ao mesmo tempo, parece.

GM: De forma alguma separatista. O movimento separatista do Sul é fundado numa noção elitizante e conservadora daquilo que somos, e está longe de parecer com os meus propósitos. A ideia de separação do Sul e formação de uma nação soberana, na minha opinião, e baseando-me nos discursos que ouço dos simpatizantes da causa, alimenta-se da crença de que supostos “defeitos” na formação cultural do Brasil poderiam ser eliminados, já que, supostamente, o Sul não compartilha dos mesmos defeitos – isso geralmente aparece no discurso dos simpatizantes quando falam em certa “preguiça”, “atraso”, “acomodamento” e “espirito corruptível” que caracterizariam o Brasil acima do trópico. Livrando-se deles, então, os “povos mais avançados” do Sul poderiam buscar seu futuro glorioso. Isso tudo é uma grande bobagem, e uma bobagem que me parece xenófoba. O que eu quero, muito pelo contrário, é buscar as formas possíveis de articular as minhas experiências de Brasil com aquelas que se tornaram majoritárias e, portanto, constituem a tradição. Isso é muito parecido com o que o Vitor Ramil andou pensando sobre ser pelotense e brasileiro ao mesmo tempo. Só que, lá de Chapecó, pensar a diferença unicamente sob o signo do frio e da paisagem passa longe de dar conta do recado. Isso pode funcionar muito bem pra um gaúcho de Pelotas, uma cidade antiga e que, mesmo que à distância e na fronteira, participou intensamente de vários momentos importantes da história local e nacional. Em Chapecó, há muitos outros dados a serem incluídos, como o dado étnico, por exemplo. Então, foi preciso, para mim, descobrir outras formas, as minhas próprias, de participação na cultura ao mesmo tempo local e nacional…

ML: Que outras formas são essas?

GM: O principal, e o que aparece sem sombra de dúvida com mais força nos meus textos, é a capacidade que a indústria de massas possui de gerar uma sensação de pertença transfronteiriça através do estabelecimento de uma espécie de «cultura sem território», da qual podemos participar quase que sem depender das formas de relações culturais locais. Sobre isso, tem duas coisas que eu queria dizer: a primeira delas é que, em Chapecó, talvez por não ter uma tradição local muito marcada, não houve necessidade de grandes negociações simbólicas (alguma sempre há) para que a juventude aceitasse amplamente os estilos da cultura de massas (o rock, por exemplo), ao contrário do que aconteceu nas capitais mais centrais do Brasil nos anos 1960, quando o pop chegou para disputar território com uma tradição já bem consolidada, e a resolução disso aparece na necessidade de negociação entre o nacional e o estrangeiro, entre o moderno e o arcaico, que é o trabalho dos tropicalistas; a segunda coisa é que, talvez justamente por ser uma cidade cuja sensação de participação no Brasil depende muito dos meios de comunicação (que é o que de fato nos liga culturalmente ao resto do país), acredito que a nossa (a minha, pelo menos) forma de participação na cultura nacional remete àquilo que o Renato Ortiz chama de «a moderna tradição brasileira», que surge com a ressignificação da nacionalidade pela via da consolidação de uma indústria cultural brasileira. Por isso minha identificação extrema com os tropicalistas (especialmente os Mutantes), com o Zé Agrippino de Paula, com as histórias em quadrinhos e o BRock. Acho que nesse aspecto mais «brasileiro pop» eu posso me reconhecer tranquilamente. Mas, enfim, tô falando pelos cotovelos…

ML: Tu toma Chapecó como ponto de partida. No entanto, sinto que a tua literatura não corresponde a uma literatura regionalista. Vejo ela representar boa parte deste Sul que não se sente representado e que procura sua própria representação. Seria essa busca por representação o que a gente chama de “Subtropicália”?

GM: eu acho que não, não é regionalista não, até porque hoje esse negócio de regionalismo é atravessado e sobreposto por outra coisa, que é a cada vez maior possibilidade de participação num esquema cultural sem território, como eu vinha dizendo. Seria, também, ingenuidade dizer que o local não existe, que não temos idiossincrasias, particularidades, formas próprias de interação com o mundo, que nossa sensibilidade se dissolveu completamente na indústria de massas. Isso é bobagem. Participar de algo não exclui o fato de que essa participação é feita a partir de um ponto de vista específico, que também é regional. Enfim, a Subtropicália nasceu de minha vontade de falar sobre mim mesmo, sobre a minha vivência da minha cidade natal e sobre as minhas constantes necessidades de entender os discursos de brasilidade e de compará-los com a minha experiência. É muito importante deixar claro que essa é uma viagem minha, não são todos os colonos urbanos lá do Oeste de SC que sentem essa sensação de desconforto. Mas o feedback que tenho recebido sobre o ensaio/manifesto em que cunhei o termo está me demonstrando que tem muita gente que também se sente assim. Então, sim, a Subtropicália é uma busca por formular minha experiência de Brasil a partir do Sul – e de um Sul bem específico, então acho que é uma busca de representação sim. Pra ser mais preciso, eu definiria a Subtropicália, grosso modo, da seguinte maneira: é uma tentativa de revisar a tradição brasileira a partir de novas configurações culturais e de um ponto de vista regional incomum – o Sul italiano-alemão, urbano e jovem, tendo como ponto de partida a experiência pessoal. E não abro mão de deixar claro esse aspecto da subjetividade, pois certamente Chapecó, ou o Brasil, devem ser fenômenos muito distintos para quem não é descendente do colonizador europeu (os colonos), como os indígenas, ou os haitianos que vieram depois do terremoto, enfim…

ML: “Nuvem Colona”, teu novo romance (inédito), prevê um movimento cultural colono de vanguarda. Além disso, “Nuvem Colona” continua a experimentação na narrativa iniciada pelo teu “Demo via”. É verdade que autores diferentes têm escrito praticamente o mesmo livro na literatura brasileira contemporânea?

GM: Chamou pra chincha! (risos) Vou tentar responder à altura. Vamos lá. Quero desdobrar tua pergunta em mais de uma resposta, pois tem pontos aí a serem esclarecidos. Primeiro de tudo, a opção de vanguarda em “Demo Via, Let’s Go” nasceu de uma inclinação pessoal minha para a experimentação e o embate, junto com uma percepção de marasmo e covardia em nossas letras contemporâneas “oficiais” (aquelas reconhecidas nos concursos, nas universidades, principalmente no mercado etc.). Chamo de marasmo porque é uma literatura que, salvo exceções, se acostumou a achar que o Brasil tinha finalmente dado o salto histórico de desenvolvimento e inserção no “concerto das grandes nações”, e então começaram a querer fazer uma «literatura internacional», em que problemas cruciais da nossa formação específica são ignorados. Além disso, a covardia se expressa principalmente na adoção de «esquemas literários» consolidados e que são mantidos porque é assim que um escritor morno e pouco criativo crê que vai ganhar concursos e atingir um público com gosto já formado. Não se trata, nesse caso, simplesmente de repetir influências, mas de pasmaceira intelectual mesmo. Pra mim, quem só sabe fazer o que dá certo não sabe fazer. Por isso, adotei como talismã a frase do Oswald: «a contribuição milionária de todos os erros»; isso virou epígrafe oficial de tudo que faço. E gostaria de adicionar ainda outra, do Rogério Sganzerla (conterrâneo nosso aí de SC): “somos antiestéticos para sermos éticos». Ou seja: o mau gosto é a única forma de sermos fiéis à vida neste Brasil. Acho, então, que o gesto de vanguarda no “Demo Via” surge de uma vontade de ruptura, de confronto, enfim, de desestabilização do que se tornou preguiçoso e garantido – e eu sei que tem muita gente fazendo isso, cada qual à sua maneira, não pretendo ser exclusivo. É um livro que se abriu completamente a certas experiências, ainda bastante ingênuas, próprias de um escritor iniciante, e que possui, no geral, certa dicção amadorística, muitas vezes buscada conscientemente, em outras por simples falta de habilidade de executar minhas ideias. O “Nuvem Colona”, por sua vez, tenta revisar e, inclusive, tematizar esse gesto de vanguarda. Mas, se no “Demo Via” optei pelo escracho, pelo exagero, pelo feio, pelo mau gosto, pelo delírio, pela irracionalidade e pela «chanchada cristã» (cheia de culpa), o “Nuvem” é muito mais contido, sem a pegada trash tão marcada, escrito na forma de depoimentos de um grupo de escritores colonos que, no passado (e esse passado é o nosso presente), tiveram um grupo de vanguarda em que experimentaram várias formas estéticas relacionadas à sua própria cultura. É um livro acho que mais maduro, e que mistura 3 coisas: os gêneros tradicionais do romance de formação e do romance de ideias (inclusive com um estilo bem «realista») e mais uma coisa nova que estou experimentando: a remixagem literária. Isso porque o “Nuvem” parte de “samples” de cultura que eu encontrei por aí e resolvi reutilizar, de minha própria maneira, em um novo livro. É uma coisa que aparece ainda incipiente lá no “Demo Via”, mas que se tornou o elemento quase principal do “Nuvem Colona” e que pretendo levar ao extremo no meu próximo livro, que já estou planejando.

ML: Acho que já temos bastante material até aqui. Mas tenho ainda uma última pergunta, Matte: quem descobriu o Brasil?

GM: Não sei (risos). E não interessa. O que eu quero é redescobrir.

***

*Gustavo Matte nasceu em Chapecó em 1986 e mudou-se para Porto Alegre/RS. Desde adolescente esteve envolvido com música, teatro, quadrinhos, cinema e literatura, tendo publicado e distribuído, em Porto Alegre, uma série de fanzines intitulada Polpa. É autor do romance Demo via, Let´s go! e do ensaio Menos tropical e mais tropicalista: subtropicalista!, ambos publicado pela Editora Kazuá, em 2017.

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