Há imagens que ficam mais novas com o passar dos anos, e há imagens que dizem mais de nós que qualquer outra coisa. Na amoreira que tínhamos no quintal da minha infância foi que uma dessas me apareceu, e ficou. Era galhuda, folhosa, linda a nossa amoreira. Na época de frutos ela ficava carregada e todo o chão se pintava com seu sangue violeta. Pela manhã, ainda sob o frescor do orvalho, é que acontecia dela atrair o maior número de pássaros. Sempre fui fascinado por eles, herança do meu pai, que até os dias de hoje tem lá seus pixarros, pintassilgos, curiós e canários… Mas nunca gostei de gaiolas, gostava era de persegui-los na natureza: armar a arapuca, admirar a caça e soltá-la depois. Minha grande aventura era descobrir um ninho na mata e acompanhar o dia a dia dos seus provedores, o momento em que os filhos piavam fino e abriam desesperadamente o bico para receber alimento. Esse fascínio fazia com que eu acordasse mais cedo e, sem que minha mãe percebesse, fosse para o quintal observar a amoreira e seus convidados. Foi numa manhã dessas que ele me surgiu. Um pássaro inédito. O sol vinha fio a fio, abrindo caminho entre as folhas, e seu peito de tão amarelo se confundia com ele. Cegou-me. Tinha o tamanho de um bem-te-vi, mas não era um. Seu amarelo era mais amarelo e, o mais incrível, as asas eram azuis, muito mais azuis que a de um azulão ou assanhaço. Ele ficou de perfil e pude ver nas asas duas listras lilases e, na cabeça, uma espécie de crista vermelha. Paralisei-me. Foi nesse exato instante que minha memória deu o flash. Nunca mais me reencontrei com aquele pássaro. Nas excursões ao zoológico, enquanto todos iam atrás do leão ou do gorila, eu perambulava a procurar uma espécie parecida e, como nunca a achei, penso mesmo que essa ave foi adquirindo aspectos míticos, ou mágicos, dentro de mim… Falava que há imagens que dizem mais de nós que qualquer outra coisa, e hoje não tenho dúvidas disso. Valores e sentimentos se transformam com o tempo, tudo o que compõe o ego pode vir a ser efêmero ou transitório, mas uma imagem assim, não; ela ganha cor e contorno, solidifica-se, e deve haver algo de muito nosso responsável por essa seleção lá dentro. Já fui algumas coisas nessa vida, atacante, caçador, poeta, músico, professor, contador, índio fora da tribo, mas hoje sei que desde então – e para sempre – fui mais aquele pássaro. Batizei-me de amarelo e, certamente, corre mais em minhas veias o sangue daquela amoreira.
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Imagem: arte do ilustrador e xilógrafo brasileiro Tiago Costa
http://www.tiagocostaartes.com.br/