Você faz brotar o mexicano em mim (Sandra Cisneros)
Você faz brotar o mexicano em mim.
O espiral escuro que se agacha
O uivo desde o centro do coração
A bilis amarga.
As lágrimas tequila desde o sábado todo até
o domingo da semana que vem.
Por você me livraria de todos os outros amores,
entregaria minha casa-de-uma-mulher só.
Te permitiria vinho tinto na cama
sem antes tirar os lençóis de seda
Talvez. Talvez.
Pra você.
Você faz brotar a Dolores del Rio em mim.
A tempestade mexicana em mim.
As navalhas afiadas, o resplandor e a paixão em mim
O crie-Caim e baile com o diabo pata-de-galo em mim
A lantejoula cintilante em mim.
A águia e a serpente em mim.
As trompetas mariachi do meu sangue.
O amor de guerra azteca em mim.
A obsidiana feroz da minha língua.
O jeito de berrinchuda, de bien-cabrona em mim.
Minha curiosidade de Pandora.
A morte e destruição pré-colombianas em mim.
O desastre da mata atlântica, a ameaça nuclear em mim.
Meu medo dos fascistas.
Você faz brotar isso sim, faz sim.
Você faz brotar o colonizador em mim.
O holocausto do desejo em mim.
O terremoto da Cidade de México ano 1985 em mim.
Os vulcões Popocatepetl/Ixtaccíhuatl em mim
A maré de recessão em mim.
O Agustin Lara romântico perdido em mim.
Os taquitos de barbacoa no domingo em mim.
O cubra-os-espelhos-com-lençóis em mim
Doce alma gêmea. Meu Outro malvado,
Sou a lembrança que dá voltas à tua cama pela noite,
que te puxa até que te afines como a lua puxa o oceano.
Arrogante como o Destino Manifesto,
te declaro todo meu.
Quero te chacoalhar e partir em dois.
Quero te manchar e criar caso.
Quero tirar minhas facas de cozinha,
as embotadas e as afiadas,
e brandi-las no ar em sinal de cruz.
Me sacas lo mexicano en mi,
queira ou não, meu querido.
Você faz brotar o Uled-Nayl em mim.
O fique-pra-trás, puta branca! em mim.
A navalha escondida na bota em mim.
O saltador dos penhascos de Acapulco em mim.
O desastre da montanha Flecha Roja em mim
A febre da dengue em mim.
A assassina do jornal Alarma! em mim.
Poderia até matar no teu nome e pensar
que valeu a pena,
Brandir um garfo e aterrorizar meus rivais,
mulheres e homens que vagueiam para te olhar,
na tua lânguida luz. Ah,
Eu sou malvada. Sou a deusa da sujeira Tlazotéotl.
Sou a que engole pecados.
A deusa da luxuria sem culpa.
A debocharia deliciosa. Você faz brotar
a delicia primordial em mim.
A obsessão nojenta em mim.
O pecado corporal e venal em mim.
A transgressão original em mim.
Ocre vermelho. Ocre amarelo. Índigo. Cochineal.
Piñón. Copal. Sweetgrass. Mirra.
Todos os santos, benditos e terríveis.
Virgen de Guadalupe, diosa Coatlicue,
Os invoco.
Quiero ser tuya. Só de você. Só você
Quiero amarte. Atarte. Amarrarte.
Amar como uma mexicana ama. Deixe
que te mostre. Amar da única forma
que aprendi.
–
Segundo ele… (Sandra Cisneros)
Nasci sob uma estrela maliciosa.
Assim diz meu pai.
Isso talvez explique sua pena.
Uma filha única,
que ninguém vinha buscar
e nem ao menos afastar.
É um destino antigo.
Um traço de família vindo
De uma tia avó imencionável.
Seu pecado era a beleza.
Viveu como amante
E morreu solitária.
Houve também
uma prima com a famosa
como posso dizer isso?…
profissão.
Ela fugiu com um coronel,
e logo após:
com a folha de pagamento do
exército.
E, é claro,
A mãe de vovó,
Que morreu de feitiço.
Há outras.
Por exemplo,
meu pai explica,
nos jornais mexicanos,
uma garota com meus dois nomes
foi presa por crimes audaciosos
que tiveram início
com a desobediência ao pai.
E também, e aqui ele para,
o cubano que lhe vende sapatos
diz que ele também conheceu uma
Sandra Cisneros
que foi três vezes uma viúva
amaldiçoada.
Você vê,
destino azarado é o meu,
nascida em uma família de homens.
Seis filhos, geme meu pai,
todos em casa,
e uma fêmea,
que partiu.
–
Seis Irmãos (Sandra Cisneros)
No conto de Grimm, Os seis cisnes, a irmã mantém um silêncio de
seis anos e tece seis camisas de urtiga para romper o feitiço que
transformou seus irmãos em cisnes. Ela as tece todas, mas deixa de
fazer a manga esquerda da última camisa, e quando seus irmãos voltam a
ser homens, ao caçula lhe falta o braço esquerdo – no seu lugar,
está uma asa de cisne.
Em espanhol nosso sobrenome significa cisne.
Um grande passado – castelos talvez
ou uma cidade do Saara,
se bem mais provável
um sobrenome que grudou
num menino descalço
que tocava o rebanho poeirento
por uma estrada luminosa.
Nunca vamos saber.
Talvez soubessem
os tátaro-avós
mas família gosta de guardar silêncio
talvez com bons motivos
e nem precisamos olhar muito para atrás.
Há de parte de pai um primo
de segundo grau, mas de todas maneiras,
primo –
que deu um tiro em alguém, creio
que era na sua mulher.
E por outro lado, há
um irmão da mãe que deu
um tiro nele mesmo.
Depois somos nós –
sete maneiras de fazer um sobrenome
ou quebrá-lo.
Nosso pai tem tudo planejado:
o mais velho, você será médico,
o segundo, administrador,
você – ele encolhe os ombros –deveria
apresentar meteorologia no jornal ,
o próximo, músico,
atleta,
gênio,
e o caçula, bom,
você assumirá o negócio da família.
Vocês seis, uma equipe,
seguindo o plano mestre,
o movimento cadenciado da tradição.
Vivemos para o que um espera do outro.
Meus irmãos, como é difícil acompanhá-los.
Eu tenho em mim o sangue ruim, eu penso,
o tio demente, o pedaço de bala.
Peçam-me qualquer coisa.
Seis camisas de urtiga. Um voto de silêncio.
Eu cumprirei. Mas eu sempre submergida
na minha admiração terrenal.
Meus seis irmãos, ágeis, fortes.
Salvo você, pequeno de uma asa só,
que se atrapalha igual eu
para manter limpo o bom sobrenome.
–
Depois de tudo (Sandra Cisneros)
É sempre assim
Acabou a bebida em casa
O último cigarro queimando na brasa
E uma alta dose de poesia
Às duas horas da manhã, já é claro
que tudo vai dar errado
mas lá vou eu assim mesmo
com as artérias encrespadas como artilharia
quando disco uma chamada
Este ou oeste
Central ou pacífico
Chicago, San Antonio, New York
E quando tiver lançado
minhas palavras como pedradas
cortando o ar com minha língua
que
explode esposas
e faz bebês chorarem
quando meus amantes pararem de falar
– você é louca, não grite mais,
dane-se e por favor
fale inglês
E depois de tudo
quando tudo o que é quebrável
for quebrado
somente um silêncio pesado
e o sinal do telefone gemendo
como o meu coração.
–
Las girlfriends (Sandra Cisneros)
Dê uma gorjeta pra garçonete
de calça jeans apertada.
Ela é minha amiga.
Já foi e voltou do inferno.
E eu também.
Amiga, eu acredito em Gandhi.
Mas tem algumas noites que nada dá
tão precisamente como uma garrafa de Lone Star
quebrada em alguma cabeça.
Semana passada neste mesmo bar,
dei um chute no traseiro de um cowboy
que quis pegar na bunda da Terry.
Como vou explicar? Era todo Texas
que eu chutava, e os de todas nós
tavam na reta.
No Tacolândia, a Cat dançava
um flamenco furioso ao redor
do jogador de sinuca de língua felpuda.
Um dança de guerra de certa maneira
por todas as sacanagens que já
nos fizeram.
E a Terry aqui, também fez história.
num bar desta rua onde não a deixam
entrar, e n´ outro no baixo da central.
E naquele café francês em Austin
ninguém me convida- entrez vous
A pequena Rosa de San Antonio
é a abelha-rainha do chute-na-bunda.
Quando você sair com ela
não ponha tuas roupas domingueiras.
Mas a melhor história é da Bárbara
que corre pra pegar a maior faca de cozinha
pra cada briga doméstica, dessas ruins.
Aponta pro corazón dela mesma
como uma sacerdotisa azteca que pirou
ME MATO!
Eu te digo, em noites como estas,
algo sai borbulhando
desde as pontas de nossas botas
até o pico do nosso uivo de coiote.
Vocês são muito ruins, diz uma voz
que vem do bar. Mas não, nós não somos ruins.
Porra! Eu já fui e voltei do inferno.
Menina, e eu também.
–
Com Lorenzo no Centro do Universo, el Zócalo, Cidade de México (Sandra Cisneros)
Atravessamos duas vezes a rua
por causa dos ratos. Diante de nós,,
o zócalo de noite e a Calle de la Moneda
como num sonho de Canaletto. Esqueça
Canaletto. Esto era real.
E você estava lá, Lorenzo.
A catedral com fumaça nos olhos
ainda subia como um pirâmide após
tantos séculos. Você nomeou os quatro
centros sagrados – Amecameca, Tepeyac and mais
dois que não lembro. Me lembro de você
querida flecha, e como todas as palavras
que eu sabia me abandonaram. Em inglês
e as poucas em espanhol também.
Este é o centro do universo,
eu disse e eu quis dizer. Esta é eternidade.
Neste momento. Agora. E o amor,
esse fio de copal que tanto te apavorou
quando o mencionei,
o amor é eterno, mas o quê a eternidade
tem a ver com amanhã, não sei, compreende?
Não sei se você me acompanhava.
Nem agora, nem naquele momento.
Mas sei o que senti quando botei minha mão
no teu coração, e surgiu aquele beijo,
só isso, desde o centro do universo.
Ou pelo menos, de meu universo.
Lorenzo, é o centro do universo
tão solitário de noite e tão
sobrelotado de dia? Ao meio dia,
a terra me pariu, o metrô se lançando
do túnel. Eu tropeçava nas
canetas Bic bordadas com o logo
do Batman, cabos de extensão
vermelhas, carteiras de vinyl, rosas de
veludo, vendedores de sementes, pedreiros
brilhantes que procuravam trabalho.
Lembro do menino de pés queimados
no colo da mãe, e o cheiro da carne que
fritavam, um prato de isopor grudento,
gorduroso.
De noite fugíamos
da barulheira da praça Garibaldi, os mariachis
que perseguiam os carros ao longo da Avenida Lázaro Cárdenas
correndo atrás da próxima refeição. No La Hermosa Hortênsialuzes brilhando como numa sorveteria,
rostos suados e marcados por suas penas
bebi meu primeiro pulque morno e espumoso como o sêmen.
Na última noite nos despedimos
entre duas ruas com nome de rio.
Eu me atrapalhava com a história
do Borges e sua Delia. Lorenzo,
quando nos encontrarmos de novo,
A qual beira rio? Mas este não era poema.
Somente os mosquitos que picavam
para caralho e um beijo de adeus como
mosquito picando que me deixou com raiva
durante horas. Afinal, não foram séculos
que passaram para a gente se encontrar
ao centro do universo
onde consumamos nosso beijo?
Lorenzo, eu esqueço o que é real,
confundo os detalhes sobre o ocorrido
com aquilo que testemunhei
no meu universo. É assim pra você
também? Mas por um momento
pensei, realmente pensei que
um beijo poderia ser um universo.
Ou sexo. Ou o amor, aquele sapato velho.
Veja. Continuo sem esperança.
Continuo escrevendo poemas para
rapazes bonitos. Uma metade de mim,
novamente viva.. E a outra, desde os bastidores
gritando, Sente-se, palhaça!
Ah, Lorenzo, sou uma tola.
É eternidade ou nada. Comigo é
desse jeito. Mesmo se a eternidade fosse
só um beijo, uma noite, um momento.
E se o amor não for eterno, qual sentido faz?
Se eu tivesse as palavras eu explicaria que
como um homem ama uma mulher antes do amor
e como ele a ama depois, nunca
é igual. Como se separam as duas metades
e não podem voltar a juntar-se.
Não é uma pena?
Você nomeou os centros sagrados mas esqueceu
um – o coração. Você disse que cada vez
que passasse por este zócalo
se lembraria de mim e esse beijo
desde o centro do universo.
Eu me lembro de você, Lorenzo. Está vendo
este zócalo? Se lembre.
–
Eu acordo no meio da noite e me pergunto se já te levaram (Sandra Cisneros)
A qualquer momento, os soldados podem chegar.
A qualquer segundo, Sarajevo pode render-se.
Como também podemos abrir mão do incômodo de sobreviver.
A qualquer momento, esse exato segundo pode acabar contigo.
A qualquer momento decisivo, Deus pode não dar a mínima.
Você está lá, naquela cidade. Você não importa. Você não é história.
Eu na minha cama com edredom e lençóis antigos,
E ao lado, um altar de Buddhas e Madres Dolorosas
renda fina e espelhos de Storyville,
Estou aqui. Acordei de um pesadelo.
Eu como você sou mulher.
Tampouco importo –
Nada que eu diga
Nada que eu faça.
–
Tantas Coisas Assustam, Tantas (Sandra Cisneros)
Tantas coisas assustam. Tantas.
Os mortos e os vivos.
O que a escuridão não nos permite
e o que nos permite
Passos no pátio
assim como o silêncio
E coisas simples.
Aritmética. O aluguel.
O infinito também assusta.
Números. O céu.
Deuses que sempre foram e serão.
O que é pior?
Estar sempre só
ou estar com alguém para sempre
E o finito aterroriza.
Nossas vidas por exemplo.
O amor assusta.
Igual a lua e os militares
E pesam muito.
Não um por um
Mas todos juntos
Como bolas de gude
numa latinha
A felicidade, pelo contrário,
é assunto diferente.
Coisa de pipas voando.
–
O coração ronda sobre conjecturas (Sandra Cisneros)
Dormirei com o gato
quando não houver ninguém ,
a quem eu possa me dar,
por amor ou dinheiro –
Ligarei para todos
que costumaram me amar.
Ou seduzir-me com o olhar
em minha teia de aranha
Pirada como as noivas de verão
Gelada como uma teta de bruxa,
uma patética puta .
Em suma, uma mulher ordinária.
Grata pelos excessos.
Ao menor esforço de generosidade
agarro-me ao primeiro ciclope que me pega,
me deixa mijar no tapete
e me mantém farta.
Está vendo esta mulher?
Considerada inofensiva
Perigosa e destrutiva
Apenas para si mesma.
___
Sandra Cisneros. Escritora e ativista cultural, Cisneros nasceu em Chicago em 1954, no seio de uma família de origem mexicana. Ganhou fama com seu romance de estreia, The House on Mango Street (1984), sendo também reconhecida, na sequência, pelas obras que lhe seguiram, que abrangem gêneros de ensaio, poesia, romance e conto. Considerada hoje um dos maiores nomes da literatura «chicana»; dos EUA, recebeu, neste ano de 2019, o prestigioso prêmio PEN/Nabokov Award for Achievement in International Literature.
Miriam Adelman, nascida em 1955 em Milwaukee, Wisconsin. Aos 19 anos encontrou seus primeiros caminhos «para o mundo», indo para o México, onde permaneceu por 9 anos, dedicando-se, entre outras coisas, aos estudos em sociologia na Universidad Nacional Autónoma de México. Mora em Curitiba, Brasil desde 1991; é professora da UFPR desde 1992. Além de lecionar nos programas de pós-graduação em Sociologia e Estudos Literários dessa instituição, dedica-se às paixões literárias, à fotografia, ao feminismo e às atividades equestres. Seu primeiro livro de poemas encontra-se no prelo e deve ser lançado ainda em 2019.