(…) é esse branco sem fim, onde nos arrancam o coração, a cada cada instante.
HOSPÍCIO É DEUS de Maura Lopes Cançado
por Lisa Alves
(escrito diante de 11 espelhos durante 11 Primaveras Frias)
Eu era a Senhora A
libertar era arrancar, explodir, exteriorizar. tudo o que surge vem de dentro? aonde estava a luz pré Big Bang? a matéria escura foi um ventre em fase de gestação? nossa origem é? minha espécie gostava de jaulas: jaulas de todas as cores, jaulas de todos os formatos, jaulas classes ABC e jaulas sem classe, sem esgoto, sem luz e sem alegria. milhões de jaulas com trancas, cercas elétricas, grades, muros, guaritas e uma esplêndida vigilância vinte e quatro horas. sete bilhões de prisioneiros e o romântico sonho da “Jaula Própria” – com vista para o mar, para a floresta, para a montanha ou para a miséria (pois também éramos sádicos).
Eu era a Senhora A
doava minhas habilidades às mulheres. mulheres desapropriadas de si: sombras, costelas e máquinas reprodutivas. eu as revirava em todas as conjunturas até que gritassem seus próprios nomes e ardessem de tanta paixão. e assim fui com B, com C, com D, com E: árvores tombadas pela influência das sombras. mulheres consumidas por doutrinas, por leis e pela perversidade da alfaiataria de gado. elas chegavam se arrastando. não havia energia que as colocasse em pé. eu explorava a textura de seus troncos, saboreava toda a potência de suas carnes e adormecia entre aqueles seios desertificados. elas despertavam e cresciam feito sequoias – ganhavam força e passavam a desconhecer qualquer sensação de medo. amávamos umas às outras de uma forma única e libertadora. juntas éramos mais violentas do que mil exércitos espartanos.
Eu era a Senhora A
carregava em mim aquilo que chamavam de “mal de família”. três minutos de desaforos eram o meu limite para perder o equilíbrio. eu era sem molde para as rédeas, cabrestos ou qualquer droga de controle – incluindo ondas eletromagnéticas e eletrochoques. lá fora não conseguia cumprir cargas horárias, não assinava contratos, não sonhava em ter filhos ou quem sabe encontrar a cara-metade. minha fôrma era outra – era movida apenas por uma necessidade absoluta de não ser encaixada.
Eu era a Senhora A
explosiva como átomos e núcleos de urânio e o meu ódio menor se manifestava em coquetéis molotovs ou no veneno oferecido à elite em suas taças de champanhe. já sabia desde o princípio que enfermidades e o inferno eram crias do comércio de antídotos e esse fenômeno evoluiu minha fúria a tal extremidade que comecei a incendiar igrejas e laboratórios. Queimem a Bruxa! somos o produto de uma soma complexa de injustiças e nem mesmo o ciclo da vida é capaz de apagar certas cicatrizes. medo do escuro? transporto Lúcifer no pescoço. Fiat Lux, baby!
Eu era a Senhora A
diferir, diferir, diferir! desejo ancestral de separar as coisas – um devaneio de desintegrar, partir em onze, até denominarmos algo menor do que quarks. doar um nome à antimatéria – àquilo que desde que nasci distingo por alma. e, se sou a dona, também duvido. eu Sou, e Ser independe do que se carrega, e alma não é coisa para se carregar. alma é negócio das linhas de produção e negociada nas trincheiras de Wall Street, baby! alma é produto interno bruto.
Eu era a Senhora A
minha comunicação era através de senhas e falsos perfis na www. erigia petições contra os algozes do planeta e organizava manifestações em todos os continentes. traduzíamos documentos hackeados para despertar as pessoas contra o jogo homicida dos poderes instituídos. naqueles dias, éramos muitas Ases. mas não demorou muito para os homens do passado reaparecerem com acordos e alguns números. algumas se venderam e outras foram lançadas aos quartos brancos, e pela primeira vez eu ganhei um lar – um quadrado dentro de um mundo redondo, uma espécie fora de seu habitat, um pavio excitado rumo à loucura.
Eu era a Senhora A
fui levada por homens que ruminam doenças e secam a energia feminis do planeta. propuseram alianças, tratados e acordos de “paz”. eu resisti e a resistência acarretou inúmeras penalidades – permaneci muito tempo enlaçada em um aposento bloqueado por grades e por seres uniformizados. tinha a dieta alimentar e as drágeas diárias controladas. era acordada de hora em hora para ser torturada por regulamentos e crenças. ouvia sempre a mesma melodia sobre um cordeiro que me lavaria com sangue:
♫ Vamos lavar as vestes no sangue do cordeiro ♫
Eu era a Senhora A
um dia despertei. eu só tinha as paredes brancas: quatro lados milimetricamente idênticos. eu conseguia projetar minhas vidas naquelas telas de cal e cimento – eram extensões, cada uma pertencia à outra e formavam um manto de linhas diversas. várias de mim se arrastavam pelos cantos e pelas paredes do quarto. eu murchei, não alcançava o que projetava e me sentia entorpecida e invadida pela epidemia da prisão.
Eu era a Senhora A
não era preciso fugir daquela alcova para compreender que o mundo continuava o mesmo: novas drogas pediam por novas doenças, novos negócios exigiam novas necessidades ou novas ameaças. eu era uma árvore sem sol, sem ar fresco, sem a capacidade de fotossíntese e me nutria viva através da vocação (a única que não extraíram) de recriar. chega um tempo de auto iluminação e se nos negam o sol projetamos nossas supernovas.
Eu era a Senhora A
de quatro, joelhos feridos e os braços perfurados pelas injeções cotidianas. sentia minha garganta se fechar e aos poucos a visão ia se perdendo – beirando a branco. Corra! havia uma corda ao redor do meu pescoço e um homem a puxava até minha língua escapar da boca. Corra, Coelha Branca, Corra! o ar não transitava e aos poucos vinha a ânsia de vômito, e uma vontade de sair feito um suco se esquivando de uma laranja prensada. É hora! – gritava meu torturador. a névoa se beirava. Tique-taque. eu tinha certeza de que era o fim: o meu fim, o nosso fim, e que nunca mais seríamos novamente.
Eu era a Senhora A
mais um ciclo, mais uma repetição entre intestinos. fui quimicamente organizada para recrescer em um mundo de poucas soluções e múltiplos problemas. novas guerras, novos heróis e uma complexidade de tecnologias que evidenciam nossa superioridade às aranhas. o pôr do sol ainda é lindo, mas eu evito a Lua por considerá-la uma ferramenta de vigilância. outra vez conspiro por não compreender distinções, colecionadores, anéis de diamantes e o extermínio entre nossa espécie. já não tenho fé na mudança – tudo se repete de forma indistinta e a morte física é uma falácia. saio e entro da toca em um processo infinito e degradante. tenho colecionado traumas e cicatrizes. Corra, coelha branca, corra! eles compuseram uma dose maior de controle. hoje minha mente é uma geografia colonizada e todos os dias eu me converto em um corpo de pura omissão.
Eu era a Senhora A
Fotografia | Francesca Woodman (1958-1981)
Prosa | Lisa Alves (1981 – xxxx )